segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Depoimento - Parte 2 - Como foi pastorear igrejas sem saber da minha condição dentro do espectro autista


Acredito que muitas pessoas estão sofrendo nesse momento, sem entender o que estão vivenciando, por não saberem de suas reais condições e não se conhecerem bem, achando que nunca vão conseguir "encontrar os seus lugares ao sol". É bem provável que muitos indivíduos, aqui no Brasil, sejam homens e mulheres aspies e não tenham ideia disso, enfrentando situações muito desgastantes para si mesmos e sendo mal interpretados pelos que estão ao redor.

Alguns portadores de TEA leve, principalmente as mulheres, conseguem camuflar o que sentem e se comportar como pessoas neurotípicas quando estão socializando, mas por dentro estão numa luta muito difícil consigo mesmos, sem entenderem o que está acontecendo. O escape para essas pessoas é ocupar a mente com alguma atividade que lhes agrade (geralmente com artes, jogos ou mesmo estudos) para esquecerem por alguns momentos de seus dilemas. Alguns parágrafos à frente vou relatando um pouco dessa luta com detalhes. 

Não são poucas as vezes que, por causa da limitação perceptiva, dificuldade de mudar rapidamente de uma tarefa para outra e dificuldade de socializar, tais pessoas são desqualificadas para diversas vagas de emprego e acabam ficando na dependência dos familiares, ou mesmo passando necessidade. Quando têm sorte e conseguem encontrar trabalhos onde possam focar numa só tarefa, cujo assunto lhes interesse muito, fazem um sucesso gigantesco, superando os resultados de qualquer pessoa normal que desempenhe a mesma tarefa.

Os aspies tem o chamado "hiper-foco", que lhes permite realizar tarefas que exigem extrema concentração com uma precisão invejável, no entanto, eles precisam se interessar pelo assunto da tarefa. Quando o serviço está relacionado a um assunto que não é de seu interesse, o aspie até se esforça para aprender e fazer, no entanto, não terá muito êxito. Quando se interessam por um determinado assunto ou tema, sozinhos pesquisam muito sobre ele e são capazes de armazenar muito conhecimento a respeito, chegando até mesmo ao ponto de palestrarem sobre o tema escolhido com muita facilidade.

Antes de prosseguir com meu depoimento, quero que os leitores saibam que as informações que se seguem estão relacionadas a minha pessoa somente, em como as coisas se passaram dentro de mim mesma. O foco deste texto está em meus próprios sentimentos, e não no todo do que aconteceu. Para expor os resultados de uma forma global, farei um outro texto em seguida, mostrando como as pessoas que interagiram comigo reagiram e o que aconteceu a elas.

Depois que comecei a seguir a Cristo e frequentar o meio evangélico junto com meu esposo, conheci melhor a Bíblia Sagrada e seu conteúdo se tornou meu objeto de interesse particular; desse modo, passei a fazer muitas pesquisas sobre vários assuntos contidos nela e, especialmente, passei a me dedicar a conhecer a Deus através das escrituras. Concomitantemente, também passei a compartilhar as informações que estava obtendo tanto em pregações nas igrejas como na internet.

Buscando ao Senhor me surpreendi com tantas informações maravilhosas e que fizeram toda a diferença na minha vida, como também sei que Deus usou e tem usado o conhecimento que tenho compartilhado até agora para abençoar as vidas de outras pessoas. O feed-back das pessoas que acompanham nosso trabalho (Ministério Águios) tem sido muito positivo.

Em contrapartida, meu envolvimento com os irmãos nas igrejas sempre foi muito desgastante (especialmente para mim), pois quando meu relacionamento tomava o caminho para deixar de ser superficial e se tornar mais próximo, eu simplesmente retrocedia, devido à estranheza da minha parte e não aceitação de muitas coisas; eu desejava continuar na minha solidão e no meu silêncio de sempre, pois é desta forma que eu ficava - e fico - tranquila. Apesar de tentar parecer uma pessoa normal e me esforçar para praticar o ensino de Cristo, a minha condição aspie sempre estava lá para me atrapalhar, e eu não tinha ideia disso.

Muitas vezes, fui interpretada como carnal, como se eu estivesse bloqueando ou me afastando das pessoas por prazer ou por gostar de fazer isso, mas, de fato, não é isso que acontece; meu bem-estar e minha tranquilidade dependem do silêncio e do isolamento. Dessa forma, por estar sendo mal interpretada, e também porque não entendia minha real condição, acabei aceitando que eu estava errada no meu comportamento e fiz um esforço sobre-humano para me socializar como uma pessoa normal o faz, chegando até a assumir um trabalho pastoral. O que eu não sabia era que essa atitude ia me desgastar até me deixar depressiva, sem que eu entendesse o porquê.

Atender a chamada pastoral foi para mim como seria para uma criança de dois anos tentar alcançar a prateleira mais alta da estante de sua casa: enquanto para um adulto isso é absolutamente fácil, para a criança exige um esforço bem maior, pois terá que subir numa cadeira ou em outros objetos que lhe sirvam de degraus, para, enfim, alcançar a prateleira. No início, a criança está compelida pela curiosidade ou por conquistar para si seu objeto de desejo; no entanto, isso é perigoso para ela, pois tentando alcançar seu objetivo, fatidicamente, ela poderá levar uma queda de um lugar alto e se prejudicar com isso. Foi o que aconteceu comigo.

Tenho que deixar claro aqui que Deus não tem culpa alguma do que me aconteceu. De fato, Ele avisou antes e de diversas formas que aquilo não era para mim, só que eu não entendi, muito menos meu esposo. Na realidade, a chamada pastoral foi para ele e não para mim, só que nós interpretamos como se fosse para os dois, pois no momento que ele assumisse, inevitavelmente, eu teria que dar um suporte mais intenso, visto que íamos iniciar duas congregações a partir do zero, como missionários, e sem muita ajuda. Portanto, a responsabilidade de decidir prosseguir com esse trabalho foi inteiramente minha, e ninguém, muito menos Deus, teve culpa de nada. 

No íntimo do meu ser, eu sabia que meu marido estava plenamente apto para lidar com as pessoas e assumir o chamado, mas eu, por algum motivo que não discernia ainda, não estava. Mas, resolvi passar por cima de mim mesma e achei que suportaria tudo o que estava por vir, pois eu entendia que apenas tinha alguns defeitos dos quais eu poderia me arrepender e me livrar com o tempo, que eu era uma pessoa normal e estava certíssima que Deus me capacitaria para fazer tudo o que teria que fazer.

Realmente, apesar de eu estar executando um trabalho que não era para mim, Deus me livrou muitas vezes e me capacitou sobrenaturalmente para trabalhar no meio eclesiástico e suportar situações que eu mesma, na minha condição real, não teria suportado por muito tempo (eu ainda consegui passar seis anos no trabalho pastoral ao lado do meu esposo). Deus sabia que a minha intenção era dar suporte ao meu marido naquele chamado, mesmo que ainda eu sentisse que não tinha condições de estar fazendo aquilo. Eu não poderia vê-lo precisando de ajuda e ficar de braços cruzados.

Como as igrejas estavam iniciando, e não tínhamos muita ajuda para fazer todos os serviços nas duas congregações, eu me sentia na obrigação de colaborar em tudo o que eu podia, inclusive, assumindo eu mesma a liderança de uma das duas igrejas que tínhamos fundado.

Dentre todos os trabalhos que tínhamos a realizar no exercício pastoral, além de fazer a parte de louvor, pregação, limpar e abrir a igreja, receber as pessoas na porta, ensinar os obreiros suas atribuições etc., o que eu achava mais desgastante era ter que lidar diretamente com as pessoas, ter que ouvi-las e dar atenção, ter que visitar e também recebê-las na minha casa; esses são, sem dúvida alguma, os principais serviços de um pastor. Eu deveria ficar muito alegre por poder servir à igreja do Senhor Jesus Cristo dessa maneira e, no início, eu realmente me sentia muito feliz, fazia tudo com muito prazer.

Mas, após alguns meses, eu estava pedindo ao Senhor para não pastorear mais, pois, antes mesmo de ir encontrar os irmãos, eu já ficava angustiada. Quando eu estava com eles, não via a hora de ir embora, ou que eles fossem embora, para eu me sentir bem novamente. Essa situação me deixava muito confusa e me levava a pensar que eu era uma pessoa muito má, e que precisava mesmo me arrepender daquilo. 

Congregar deve ser uma coisa prazerosa para os que estão em Cristo, mas, para mim, se tornou um pesadelo, eu não entendia o porquê, nem tinha como desabafar isso com ninguém. Se eu dissesse ao meu marido muito provavelmente ele iria me corrigir, pois iria interpretar que eu estava desdenhando o chamado ou desanimando de prosseguir na obra de Deus. O tempo foi passando e eu fui prosseguindo nesse dilema, calada, e cada vez mais me frustrando comigo mesma e entrando num estado depressivo, sem saber.

Quando eu assumi a liderança da segunda igreja que fundamos, já não estava bem de saúde, apresentando muitos sintomas de ansiedade e procurando tratá-los com medicamentos paliativos. Eu orava para ser curada, mas os sintomas não saiam. E não saiam porque eu não tivesse fé, mas porque eu não deveria estar fazendo aquilo. Eu não fui projetada para cuidar de muitas pessoas e fazer muitas tarefas e sim, para ajudar uma ou, no máximo, duas pessoas por vez, focando somente nelas, e não por muito tempo. O excesso de barulho e informação me desgasta e me leva a estressar mais rápido que pessoas neurotípicas.

Sempre gostei de crianças e amo estar com elas, mas, com o tempo, cheguei a um ponto que só de pensar que eu ia ficar no departamento infantil, já me dava desespero. Eu não suportava mais o barulho que elas faziam. Por causa disso, não demorou muito para eu passar a coordenação do departamento infantil para outras pessoas. Isso foi um desastre em alguns aspectos, pois as pessoas para as quais eu passei o cargo não tinham condição de assumi-lo, contudo, era o que eu tinha à disposição.

Quando minha filha, que ainda era bem jovem, assumiu o trabalho infantil na primeira igreja que fundamos, fiquei muito aliviada e feliz. Ela sempre teve vocação para lidar com crianças e, apesar de ser ainda bem jovem, isso se notava no bom desempenho dela no trabalho naquela área. Todas as crianças a amavam. Ainda hoje ela ajuda no departamento infantil da igreja que congrega.

No meio de tantos trabalhos que eu tinha para executar, eu me esforçava ao máximo para dar o meu melhor, pois não estava fazendo aquilo tudo por minha causa ou somente por causa das pessoas e sim, primeiramente, por causa de Jesus: eu queria atender ao chamado e servir como podia.

Ao assumir a liderança da segunda igreja que fundamos, era necessário que eu estivesse lá todos os fins-de-semana para administrá-la. Para tanto, tinha que sair da cidade que eu residia para outro município que distava cerca de 50 minutos de viagem, todas as sextas-feiras pela manhã, e só voltar para casa nos domingos à noite ou nas segundas-feiras pela manhã. E isso foi a gota d'água que faltava para eu iniciar o estado depressivo, que começou no meio do ano de 2016 e culminou num "meltdown" no início do ano de 2017.

Ao fim do ano de 2016, infelizmente, fomos forçados a fechar as duas igrejas, por falta de condições de exercer o pastoreio. Naquele momento eu já não podia mais assumir a liderança da segunda igreja por estar enfrentando uma crise muito forte, chorando diariamente sem uma causa aparente e sentindo muitos sintomas ruins em meu corpo: labirintite (com tonturas todos os dias e várias vezes ao dia), urticária (todos os dias), digestão ruim (frequente acúmulo de gases), insônia persistente, mal-humor, taquicardias frequentes (todos os dias, várias vezes por dia) - eu me assustava com qualquer coisa e com frequência, e cada susto era uma palpitação que me dava, dores nas articulações, engasgos frequentes (todos os dias e todas as vezes que eu me alimentava), dentre outros. Todos os sintomas juntos caracterizavam o quadro de meltdown em que eu me encontrava.

Por causa do meu estado, que se agravava dia a dia, e sem ter quem nos substituísse, meu marido não viu outra saída senão terminar com os trabalhos nas duas igrejas, para que pudesse me dar maior atenção e cuidar de mim. Nós achávamos que ao parar o trabalho pastoral minha saúde iria melhorar, mas isso não aconteceu. Como continuei piorando, mesmo estando somente em casa, fui buscar ajuda profissional. Em março de 2017 iniciei um tratamento para depressão, que foi muito bom para mim, aliado ao descanso que fui obrigada a ter.

O tratamento durou cerca de um ano e, em abril de 2018, eu já estava completamente curada da depressão, sem mais nenhum dos sintomas do meltdown (eles pararam completamente com cerca de três meses após o início do tratamento) e não precisei mais continuar com a medicação. No entanto, minha condição asperger não havia sido diagnosticada, mesmo que ainda durante as consultas eu falasse como me sentia e o que acontecia comigo. Hoje eu sei o motivo: a pessoa que estava fazendo o meu tratamento, apesar de ser uma excelente profissional, não era capacitada para dar um diagnóstico de TEA. 

Descobri que os profissionais capacitados para isso são os que fazem cursos específicos na área do espectro autista (nem todos fazem!), e que o laudo não pode ser emitido por um profissional apenas, mas por uma equipe multidiciplinar, formada por, pelo menos, um psicólogo, um neurologista e um psiquiatra, todos já com experiência no diagnóstico dessa condição.

Foi durante o tempo do tratamento que comecei a pesquisar sobre neuroatipias, pois eu desconfiava que meu caso era especial. Quando terminei a medicação, eu já estava ciente de que era aspie, mesmo sem ter feito o diagnóstico com um profissional, pois passei todo aquele tempo do tratamento assistindo vídeos e lendo artigos médicos sobre várias condições até me identificar com o quadro do portador de TEA. 

Quando eu finalmente disse ao meu marido o que achava que tinha, ele não aceitou. Ele me achava normal, embora uma pessoa um tanto difícil de conviver. Só que, eu não me sentia normal, quando me comparava com os outros. Por fim, ele mesmo foi pesquisar sobre o assunto e chegou à conclusão que eu estava mesmo dentro do espectro autista.

Foi preciso toda uma série de acontecimentos para que, enfim, descobríssemos que havia algo diferente no meu corpo e que, ao contrário do que pensávamos, eu não estava de má vontade para servir a Deus. Saiu um peso de mim e hoje estou em paz com relação ao que posso ou não fazer, sem me condenar por não poder fazer alguma coisa. Meu desejo é que pessoas que possam estar na situação em que eu me encontrava e que hoje estão sofrendo sem entender o que se passa com elas possam saber a verdade sobre si mesmas e finalmente levarem uma vida tranquila.

Muitas vezes pensei em desistir de servir ao Senhor, por não entender o que se passava comigo. No entanto, Ele sempre levantou pessoas para me ajudar a continuar, e meu esposo, apesar de sofrer com meu comportamento estranho, foi a pessoa que mais Deus usou e continua usando para me animar e ensinar. Sou muito grata ao Senhor pela vida dele.



Tenho consciência que durante todo esse processo de auto-descoberta, Deus estava ao meu lado, me livrando e cuidando de mim. Ele mesmo me mostrou claramente como eu deveria proceder, especialmente no momento da crise, pois fiquei num estado em que não sabia mais o que fazer, com quem falar ou para onde ir. Nós não dizíamos a ninguém o que estava se passando comigo, para não escandalizar as pessoas. Eu podia ser mal interpretada, visto que as demais pessoas do nosso convívio me viam como alguém aparentemente normal.

Posso atestar que Jesus Cristo realmente nos guiou no meio de toda essa experiência. Sei que Ele não desejava que tivéssemos passado por todo esse sofrimento, mas, de certa forma, foi necessário para que finalmente compreendêssemos como deveríamos atender corretamente ao nosso chamado. Ele é bom e paciente!

Missionária Oriana Costa

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